“𝑂 𝑑𝑖𝑟𝑒𝑖𝑡𝑜 𝑎̀ 𝑒𝑥𝑝𝑟𝑒𝑠𝑠𝑎̃𝑜 𝑒́ 𝑜 𝑝𝑟𝑖𝑛𝑐𝑖̄𝑝𝑖𝑜 𝑒 𝑜 𝑓𝑖𝑚 𝑑𝑒 𝑡𝑜𝑑𝑎 𝑎 𝑎𝑟𝑡𝑒” – 𝑮𝒐𝒆𝒕𝒉𝒆
Reflitamos sobre a visão programática do Estado Novo.
Perante este convite e em apoio, considero pertinente explicitar, antes de mais, o que se entende por Estado Novo, qual o seu enquadramento temporal e a sua génese. O Estado Novo foi um regime político autoritário e corporativista que vigorou em Portugal durante 41 anos, sem interrupção, com a aprovação de uma nova Constituição até à Revolução de abril de 1974. Ao Estado Novo, alguns historiadores também chamam “II República”, embora tal designação jamais tenha sido assumida pelo próprio regime.
A designação oficiosa de “Estado Novo” criada, sobretudo por 𝒓𝒂𝒛𝒐̃𝒆𝒔 𝒊𝒅𝒆𝒐𝒍𝒐́𝒈𝒊𝒄𝒂𝒔 𝒆 𝒑𝒓𝒐𝒑𝒂𝒈𝒂𝒏𝒅𝒊𝒔𝒕𝒂𝒔, quis assinalar a entrada numa nova era aberta pela Revolução Nacional de 28 de maio de 1926, encerrando o período do liberalismo anticlerical, em Portugal.
Como regime político, o Estado Novo foi também chamado de salazarismo, em referência a António de Oliveira Salazar, seu fundador e líder, homem que sob a égide de grandes valores e princípios, entre eles, 𝑫𝒆𝒖𝒔, 𝑷𝒂́𝒕𝒓𝒊𝒂, 𝑭𝒂𝒎𝒊̄𝒍𝒊𝒂, 𝑨𝒖𝒕𝒐𝒓𝒊𝒅𝒂𝒅𝒆 𝒆 𝑻𝒓𝒂𝒃𝒂𝒍𝒉𝒐, fez assentar a sua teoria e ação política e com as quais tentou impregnar o quotidiano mental dos portugueses. O seu objetivo central seria proceder a uma verdadeira “revolução mental e moral” que pusesse cobro à decadência das crises dirigentes e restituísse à Nação a fé e confiança nos seus destinos, centrando toda a sua teoria e ação políticas num conjunto bem limitado e coerente de valores absolutos, aos quais tudo se subordinava.
Partilhando a visão pessimista decorrente de vários contextos, nomeadamente grande depressão, guerra civil espanhola, tensões europeias e pré II guerra, grande parte da intelectualidade portuguesa do período republicano atribuía essa decadência e o fracasso do escol dirigente do país a uma espécie de perversão mental e moral em que a Nação mergulhava na “apagada e vil tristeza” do poeta. O caminho estava traçado. O imperativo seria a permanência do regime e sua solidez, criação do Secretariado da Propaganda Nacional. O ano de 1933 é o reflexo da evidência do Estado Novo ter tido a clara perceção da importância da propaganda política no quadro da legitimação e consolidação do regime. Este procedimento, a par da retórica de grande intensidade dramática, cheia de lacunas, (aquilo a que Aristóteles chamava de atechnon, “sem arte”), transformaram-se em vantagens, produzindo efeitos no comportamento e ação dos ouvintes, revelando ser condição suficiente para lhe garantir a vitória da primeira batalha contra a oposição.
É porventura na alocução comemorativa do décimo aniversário da revolução do 28 de maio de 1926 na “cidade santa de Braga” que Salazar procede à melhor síntese da sua axiologia através de um discurso ideológico sobre as “𝒈𝒓𝒂𝒏𝒅𝒆𝒔 𝒄𝒆𝒓𝒕𝒆𝒛𝒂𝒔” em que a nação devia estruturar-se e que importa analisar bem o lugar relativo de cada um dos valores proclamados. Disse: “Às almas dilaceradas pela dúvida e o negativismo do século, procurámos restituir o conforto das grandes certezas. Não discutimos Deus e a virtude; não discutimos a Pátria e a sua História; não discutimos a autoridade e o seu prestígio, não discutimos a família e a sua moral; não discutimos a glória do trabalho e o seu dever.»
Sublinhem-se dois aspetos: o destinatário destas “grandes certezas”, que não era outro senão a elite em crise de confiança face à estratégia assinalada, ou seja, declarando guerra a todas as “doutrinas dissolventes” que ousassem discutir Deus, Pátria e Família. A ênfase colocada na recusa da discussão do que se consideram princípios absolutos. Deus, entidade reguladora da sociedade e fundamentadora da virtude nacional e da tradição histórica do país. Pátria, enquanto Nação na sua dimensão histórica e territorial – “… o sentimento patriótico, a organização corporativa e o Império Colonial”, o que implicará a ideia de unidade, coesão e logo de ordem pelo que fundamentará igualmente a prioridade concedida ao princípio da autoridade; autoridade para que afinal convergem os princípios anteriores, será a essência do estado e a Família, lugar de transmissão dos valores anteriores e, como tal, garantia da tradição e o equilíbrio social. O trabalho é sobretudo o antídoto conta a parasitagem e o vício que fomenta a desordem e, subsidiariamente, fator de progresso e prosperidade, sempre limitados sobre a parca ambição de um simples mínimo de subsistência vital para todos. Tudo converge, assim, para o princípio da autoridade e o valor da ordem, condições básicas de eficácia operacional do Estado. Deus, no plano ético, a Pátria no plano histórico, a família no plano ético-social, o trabalho no plano ético-económico, são, afinal de contas, outras tantas formas de fazer irradiar a autoridade. Autoridade, por sua vez, que é expressa e aceite, como “um facto e uma necessidade”, “um direito e um dever”, “um alto dom da Providência”, indispensável à defesa dos interesses do coletivo.
Aqui chegados, justificado o propósito teórico da autoridade do “Estado Novo”, impõe-se necessariamente relembrar as formas, instrumentos e estratégias utilizadas para garantir a sua preservação, desde logo foi criada, em 1933, a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), para controlar os opositores políticos ao regime, contando com uma vasta rede de informadores civis, censura prévia, conhecida como «lápis azul», prisões dirigidas, etc… 𝒆 𝒒𝒖𝒆 𝒂 𝒉𝒊𝒔𝒕𝒐́𝒓𝒊𝒂 𝒏𝒂̃𝒐 𝒑𝒆𝒓𝒎𝒊𝒕𝒂𝒓𝒂́ 𝒐 𝒆𝒔𝒒𝒖𝒆𝒄𝒊𝒎𝒆𝒏𝒕𝒐.
Sagaz, Salazar, de aparente fino trato, com o decorrer dos anos, estudava o social e pegava nos desejos mais profundos do povo dando-lhes voz, fazendo deles a sua própria inspiração mantendo como pilares ideológicos as “grandes certezas”. Reitera a necessidade da continuidade impondo o tradicional ânimo e sentimento de culpa, “…sentidamente patriota considerar-se em boa consciência indiferente a uma obra que se destina a engrandece a sua Pátria; a segunda é que a própria grandeza da obra e o simples decurso do tempo fazem aumentar as nossas responsabilidades.
Parece óbvio que desta breve reflexão depreende-se uma forte crença de convicção inalterável de um ser austero e autoritário, Salazar, motivado pela moralização imposta de um povo através de princípios absolutos e imutáveis de cariz teórico-político sempre semelhante, assume, na sua génese os mesmos conceitos típicos, como Deus, Nação, Família, Trabalho e Autoridade, ruralidade, universalismo, império, universalismo, reconhecimento internacional e raça civilizadora, enquanto missão fora fronteiras.
Volveram-se anos, e em novo discurso à nação, Salazar, na conceção programática do “Estado Novo”, faz uma prolepse do que será o regime e as bases em que se estrutura, fundamentando-as a partir da cisão com o passado – instabilidade republicana – numa data simbólica, é no 28 de maio que marca a transição para o “Portugal Restaurado”, o que significa que não o radica em valores inovadores e revolucionários, mas em valores que inscritos na tradição histórica de Portugal, apesar de alguns momentos de desvirtuamento dessa essência, aliás, em que a Primeira República é o exemplo. Nessa dinâmica social, o extenso consulado de Salazar cria nova prolepse dos anos vindouros do regime, desta vez devidamente estruturado assente nos mesmos valores.
Esta base política e a atividade ideológica de décadas imposta ao povo, aos trabalhadores construtores do país, contrariavam a necessidade de dar resposta às questões a eles ligadas, como a saúde, a alimentação, a educação, a liberdade, ou a falta dela, que muito os inquietava, particularmente àqueles que não se permitiram deixar de pensar pelas suas cabeças, negando firmemente o pensamento imposto. Carecia-se da mudança, que se observava em outros cantos do velho continente, num caminho de conquistas revolucionárias, mais centradas no povo e para o povo e das quais aqui foi central o papel dos representantes das classes trabalhadoras, a inevitável criação das agremiações, associações e federações, ainda que na clandestinidade, com estratégia da luta pela paz, pelos direitos iguais e sobretudo pelo progresso social.
A edificação social, a custo, foi sendo garantida. Mas, como em todas as renovações, o conflito foi inevitável, com sacrifício inimaginável de muitos rostos da resistência, entre outros, muitas figuras intelectualmente invulgares, que por nós a isso se submeteram com gestos solidários e generosos de afirmação, importunando a ditadura, projetando a sua coragem, mesmo sofrendo na carne as arbitrariedades decorrentes do sistema.
No ano de 1974, precisamente nos dias 24 e 25 de abril, com o devido planeamento, concertado o plano de ação, estavam reunidas, as condições para a materialização da demanda: 𝒔𝒂𝒊̄𝒅𝒂 𝒅𝒆 𝑷𝒐𝒓𝒕𝒖𝒈𝒂𝒍 𝒅𝒂 𝒑𝒆𝒏𝒖𝒎𝒃𝒓𝒂 𝒆 𝒄𝒐𝒏𝒔𝒕𝒓𝒖𝒄̧𝒂̃𝒐 𝒅𝒂 𝒍𝒊𝒃𝒆𝒓𝒅𝒂𝒅𝒆. Neste exercício de luta, com cravos, a merecida liberdade desamarrou a intolerável prisão intelectual imposta por décadas que se impõe manter sob pena de mau regresso.
Com respeito à história, mas especialmente a todos nós povo, é tempo de não esquecer o quão importante é usufruir dos direitos e valores que a democracia nos trouxe, salientando-se o voto livre disponível a todos os cidadãos com 18 ou mais anos, participação das mulheres na vida política, inclusão, palavra apenas “residente no dicionário”, no fundo a pretensão já forjada no Artº 21º da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, uma conquista enorme e extraordinária em torno do cidadão. Foi tal a conquista cuja, dimensão é incomensurável, que nos permite facilmente perceber que as palavras fáceis de propaganda política, face ao desespero diário da falta de reconhecimento, são as que queremos e desejamos ouvir, devem, todavia, ser analisadas e interpretadas com o rigor da história, sobretudo projetando-nos intelectualmente para as suas consequências.
Já o escrevi. Se antes o propósito era exercido de forma engenhosa, não deixava de ser descarada e ao alcance de todos os olhos, uma vez controlada pelo famoso “Princípio da Autoridade”. Hoje, continua a ser tentada, de forma dissimulada e independentemente do potencial técnico, mas o princípio continua a fazer vítimas, pois continua exercido, ainda que em outro formato.
A 𝐀𝐒𝐏𝐏/𝐏𝐒𝐏, na sua mais pura e genuína ideologia, ao lado e na defesa dos polícias, enquanto trabalhadores e das comunidades servidas, mas balizadas da sua competência, tudo fará em nome da democracia dos direitos sociais e pessoais, que abril não se baste em uma efeméride, mas num acontecimento atual, diário, pelo qual, orgulhosamente devemos lutar para resistir a todos os agentes representativos receosos de perder ou partilhar o poder, evitando o regresso ao cinzentismo de 𝑨𝒏𝒕𝒆𝒔. Não nos esquecemos de algumas conquistas: das 36 horas semanais, do método da alteração dos índices remuneratórios, do aumento dos 14% para 20% no suplemento por serviço nas força de segurança, os três dias de acréscimo nas férias, compensação de 50% pelo trabalho realizado em dias de férias, a democratização da Instituição, a participação de representantes sindicais no Conselho de Deontologia e Disciplina, reposições nas tabelas remuneratórias, criação dos novos postos, fim do corte e reposições dos suplementos retirados indevidamente em períodos de férias, entre outras tantas e difíceis lutas que levamos a cabo e perante as quais muitos atores políticos que bradam valores democráticos, mais se comportaram como pequenos ditadores, erguendo muros e tratando os polícias como não se tratassem de humanos e plenos direitos de abril.
𝑵𝒖𝒏𝒐 𝑷𝒐𝒏𝒄𝒊𝒂𝒏𝒐, 𝑽𝒊𝒄𝒆-𝒑𝒓𝒆𝒔𝒊𝒅𝒆𝒏𝒕𝒆 𝑨𝑺𝑷𝑷/𝑷𝑺𝑷